Riso enferrujado

15/06/22 - 10:38

https://headtopics.com/br/suspeito-de-envolvimento-no-desaparecimento-de-jornalista-e-indigenista-e-ouvido-pela-pol-cia-27084330
https://headtopics.com/br/suspeito-de-envolvimento-no-desaparecimento-de-jornalista-e-indigenista-e-ouvido-pela-pol-cia-27084330

Márcia Brandão Raposo
Jornalista


“Nem os santos têm ao certo a medida da maldade (...)
E há ferrugem nos sorrisos”. (Renato Russo, compositor e cantor)

Tomo emprestado este verso da música “Há Tempos” para falar sobre os dias atuais e a abundância de crueldades que eles têm proporcionado nos últimos anos. Está cada dia mais difícil abrir os olhos pela manhã e sair da cama para a lida da vida. A última angústia chegou com o desaparecimento do indigenista Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips, na região do Vale do Javari, no Amazonas, fronteira com o Peru. Quem vive por aquelas bandas, ou quem anda ou andou por lá, sabe que muitos lugares são terra sem lei. Mas, ainda bem, há os que lutam para acabar com os tantos tipos de crimes lá praticados, ainda que isso lhes custe a vida.

No momento em que escrevo este texto, há informações desencontradas sobre uma possível descoberta dos corpos. Torço para que a experiência e vivência de Bruno na região tenham sido usadas para se esconderem. Mas eu mesma não creio nessa possibilidade. É que tudo que está acontecendo em relação a este caso me trouxe de volta os dias em que viajei a Roraima para fazer minha última reportagem para o Jornal O Globo, de onde saí após 16 anos para iniciar novo trabalho. 

Era fevereiro de 1989. O país vivia os ares da redemocratização após a Assembleia Nacional Constituinte, que elaborou uma nova Constituição chamada pelo deputado Ulysses Guimarães de “estatuto do homem, da liberdade e da democracia”. Haviam sido rompidos 21 anos de ditadura militar. Na esteira da nova Constituição, que garantia os direitos indígenas e a preservação das florestas, o governo da época planejava realizar uma força tarefa policial e militar para retirar 50 mil garimpeiros do extremo norte do país, na região do Pico da Neblina. 

Foi então que o jornal me enviou para Boa Vista. Ao desembarcar de um avião monomotor na aldeia indígena yanomami Papi-U, me deparei com um cenário de organização da exploração ilegal do ouro, construído nas barbas das autoridades nacional e estadual. O governador de Roraima, na ocasião, era Romero Jucá, que havia sido presidente da Funai quando coronel e tornou-se senador anos mais tarde, cargo em que articulou a saída golpista da presidente Dilma Rousseff “com o Supremo, com tudo”.

Na aldeia vi realidades distintas. De um lado, a maloca indígena onde 50 pessoas empobrecidas, mal alimentadas, crianças com barrigas imensas e nariz escorrendo por doenças levadas pelos não-índios, viviam o conflito entre a cultura nativa e aquela que lhes estava sendo imposta. A cem metros da maloca, a pista de pouso construída pela Aeronáutica para a Funai, mas então utilizada pelas aeronaves que serviam os garimpeiros. Perto da maloca, estavam o posto da Funai e da Polícia Militar, que registravam a soma diária de ilegalidades. Mas não as impediam. Na outra ponta da pista, no lado oposto à da maloca, estavam instaladas 18 tendas que guardavam equipamentos para garimpagem, um pequeno restaurante e redes para dormir. Dos garimpeiros. Para ir de uma realidade à outra, bastava caminhar pela pista.

A dimensão do significado da exploração do ouro nas terras indígenas me foi dada por um dos garimpeiros, dispostos a resistir a qualquer investida do governo para retirá-los de lá. Disse-me ele: “Pra nos tirarem daqui, só se cercarem a área toda com um policial agarrado na mão do outro e sem abrir as pernas; porque, se abrirem, o garimpeiro entra”.

Trinta e três anos se passaram desde então. Continuei acompanhando este tema através de amigos e de leituras em documentos e jornais. Os garimpeiros não saíram. Ao contrário, a eles se juntaram o tráfico de drogas, madeireiros, invasores de terras, caça e pesca ilegal e predatória. Crimes que poderiam ser evitados se o Estado cumprisse sua missão constitucional de proteger as florestas e os povos originários que nelas vivem e defendem. No entanto, o que se vê é a presença na Amazônia de um Estado conivente com os criminosos e que perpetua a história de desprezo aos indígenas.

Crimes que o indigenista Bruno Pereira teima em combater e denunciar. Nesta empreitada tem muitos aliados, como o jornalista Dom Phillips. Aprendi, na minha trajetória como jornalista, que na luta pela terra e por tudo que há nela, há sempre mortos e feridos. E, quase sempre, execuções dos perseguidos, oprimidos, invisíveis aos olhos da sociedade que, ironicamente, lutam por esta mesma sociedade que prefere se manter cega e ignorante. 

Crueldades fecham sorrisos e corroem os dentes. Mas não ceifam a resistência e a coragem. E em homenagem aos corajosos indigenistas Bruno e Maxciel, este assassinado na região em 2019, e ao jornalista que, como todo bom profissional não tinha medo de ir atrás da verdade, encerro este texto com outro verso, desta vez do poeta Mario Quintana: “O tempo não importa / Se for um minuto, uma hora, uma vida / O que importa é o que ficou / Deste minuto, desta hora, desta vida”.

Veja Mais