Élida Gontijo - Pela janela

31/07/20 - 13:48

Clara cansou de ficar só fechada em casa, sem poder ir à casa dos avós, escola, encontrar os amigos. Aproveitou que sua mãe resolveu reformar algumas roupas e arrastou um pequeno criado mudo muito pesado para seu franzino corpo de criança. Colocou-o no rumo da janela, subiu devagarinho quase caindo e logicamente sem fazer barulho, caso contrário seu plano finalizaria antes de começar .Ficando na ponta dos pés avistou o mundo lá fora , viu poucas pessoas passando pela rua, alguns com máscaras no pescoço, ficou pensando em sua ingenuidade se era uma nova moda já que a televisão e todas as redes sociais aconselharam usar máscaras protegendo o nariz e a boca, teve vontade de perguntar, mas se falasse mais alto sua mãe ouviria.

 

Ficou analisando como nunca tinha pensado antes em olhar por aquela janela? A pandemia está fazendo a gente mudar muito, De repente viu uma criança descalça , roupa bem velhinha, um menino bem sujinho , lá da rua percebeu seus olhos observadores e sorriu pra ele. Sentiu-se muito feliz com aquele sorriso quase sem dentes ou melhor com dentes bem cariados. Sorriu também, não podia dar tchau, as mãos se apoiavam na pequena soleira da janela. O menininho seguiu seu caminho pedindo às pessoas que encontrava algo para comer. Clara cortou o coração de compaixão, às vezes reclamava, tinha tanta coisa gostosa em casa e usava aquela frase que mata qualquer mãe : -não tem nada pra comer ! Quis descer e correr atrás dele levando muita coisa gostosa, mas não daria para fazer isso sem fazer barulho, estava tão bom ali, distraindo um pouco. Começou a pensar que o mundo tinha muitas coisas erradas a começar pelo tal Coronavírus que tão pequeno, invisível colocou todo mundo de castigo , apesar de muitos serem piores que as crianças e não obedecerem.  Aí resolveu ter uma conversa com Deus, sua mãe  sempre disse que ele escuta muito as crianças. Começou a falar baixinho, pois pensou:

_ se durante a missa o padre Evandro em algumas partes fala bem baixinho e Deus escuta, escutaria à ela também e perdoaria por estar se arriscando em cima de um móvel, escondida da mãe.    

 

-Deus você esta aí fora ? Dá um sinal se está me ouvindo pra gente conversar. De repente começou a ventar sem nenhum aviso, percebeu que era o sinal que esperava.

 

_ Muito bem meu querido sei que está aí fora neste ventinho gostoso, não leve meu chapéu, ganhei de uma tia muito querida. Sabe Deus, queria que levasse o Coronavírus embora, não aguento mais ficar fechada em casa, posso ser mal agradecida, pois tenho quintal para brincar, mas brincar sozinha! Minha mãe e meu pai decidiram não ter mais filhos, nem para perguntarem pra mim se concordava , adulto é muito egoísta, sinto muita falta de irmãos, queria ter a casa cheia, deve ser bom demais! Mas continuando nossa conversa, não tem jeito de sumir com este vírus cruel? Sei que você não tem culpa , não vou chamá-lo de senhor , acho que é muito novo, gosto de imaginar você  comouma criança como eu.

 

De repente Clara escutou um sussurro, achou que estava ficando louca, aí percebeu que era verdade quando escutou seu nome:

 

_ Clara, tenho feito o que posso , mas está difícil, os adultos bagunçaram tudo que criei, agora está aí o resultado.

Clara tremia muito, teve medo de cair , mas estava segura diante de Deus

 

_ Deus, meu Deus é você? 

 

_ Sim, você não me chamou?

 

_ Mas pensava que não apareceria assim e conversando comigo. Vejo minha vó conversando com você e não responde e por falar nela posso chorar? Estou querendo há dias, mas fico com pena da minha mãe que é filha dela e também está morrendo de saudades .

 

_ Pode chorar minha linda criança, lave sua tristeza, também tive avós, você sabia?  

 

_ Sim, na escola comemoramos o dia dos avós e sei que os seus eram Santa Ana e São Joaquim.

 

_ Exatamente, vejo que é uma menina de fé ,  fico muito feliz.

 

_ Gosto de rezar, tenho uma santinha no meu quarto, Santa Clara, por causa dela recebi meu nome.

 

_ Muito bem, Santa Clara era uma mulher muito caridosa,nasceu para servir aos que sofrem .

 

_ Vou pedir pra ela ajudar aquele menininho que passou aqui.

 

Deus sorriu da ingenuidade e pureza daquela criança. E pediu pra ela que sempre ajudasse não só as pessoas que têm falta de alimento , mas também quem passa falta de amor.

 

Como tudo que é bom dura pouco ela escutou:

 

_ Bonito Dona Clara procurando um jeito de quebrar uma perna! 

 

Aquela voz ela conhecia muito bem, ainda mais lhe chamando de dona ,era motivo para ficar com medo.

 

_ Oh mamãe adivinha com quem eu estava conversando? Seus olhos brilhavam de felicidade.

 

_ Logicamente sozinha ou melhor com seus amigos imaginários!

 

_ Nada disto, estava conversando com Deus!

 

_ Agora piorou, colocou Deus na sua turma de amigos imaginários, você e sua imaginação!

 

Clara não se importou com o comentário da mãe, correu feliz para o quintal, queria contar para suas bonecas a visita que tinha recebido .Falou bem baixinho:_ depois continuamos nossa conversa amigo. E escutou bem baixinho: -Fique tranquila tudo vai passar. Lá fora no quintal olhou para o céu e viu um lindo arco-íris e entendeu que era mais um sinal , falou bem baixinho a palavrinha mágica que a professora havia lhe ensinado: gratidão.

 

Élida Gontijo- julho de 2020. 

 

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